FacebookTwitterInstagramYoutube

Sobre os gestos brutais: o trauma, a destruição e as formas de adoecimento psíquico

Capa do artigo Coelho Junior, dal Molin & Cromberg (2023). Capa do artigo Coelho Junior, dal Molin & Cromberg (2023).

Em fevereiro de 2023, foi publicado o artigo On brutal gestures: trauma, destruction, and forms of mental illness, de Nelson Ernesto Coelho Junior, Eugênio Canesin Dal Molin & Renata Udler Cromberg, na revista The International Journal of Psychoanalysis. Essa é a terceira versão publicada deste artigo, que foi originalmente divulgado em português na revista Jornal de Psicanálise: “Sobre os gestos brutais: o trauma, a destruição e as formas de adoecimento psíquico” (2019), e em seguida na revista italiana Frontiere della psicoanalisi como “Gesti brutali: trauma, distruzione e dolore psichico” (2020).

Link para publicação:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-58352019000100020&script=sci_abstract&tlng=en (inglês)

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0103-58352019000100020&lng=pt&nrm=iso (português)

Do que trata este artigo?

O artigo, resultado de projeto de pesquisa e escrita coletivo, investiga as relações entre atividade, passividade e passivação diante de experiências traumáticas. Para isto, os autores trabalham com o relato do autor Milan Kundera sobre sua experiência com o regime político autoritário em seu país natal, a República Tcheca, utilizando-se de conceitos propostos pelo psicanalista André Green e pela concepção de duas matrizes do adoecimento psíquico desenvolvida por Luís Claudio Figueiredo e Nelson Coelho Junior (2018).

As duas matrizes do adoecimento psíquico identificadas por Figueiredo e Coelho Júnior são a matriz freudo-kleiniana, que descreve sofrimentos caracterizados por defesas ativas contra angústias, e a matriz ferencziana, que descreve estados de adoecimento em que o psiquismo não é capaz de organizar defesas, entregue à uma passivação mortífera de partes da mente, ligado a experiências traumáticas precoces.

Em suas obras, Milan Kundera fala de suas experiências com o regime comunista na República Tcheca, descrevendo momentos de entusiasmo inicial com as mudanças políticas, que são, contudo, seguidos por expulsões de seus círculos de pertencimento e por perseguição política. Esse movimento se repete para o escritor em dois momentos, tanto em 1948, com o começo do governo comunista no país, quanto em 1968, quando reformas políticas são seguidas da ocupação do país pela União Soviética e uma nova onda de repressão.

Analisando este roteiro, em que um ambiente que se apresentava simultaneamente como provedor e promissor acaba em decepção e um estado passivação, o artigo defende que o trauma precoce está ligado a experiências de agonia diante da quebra da dependência e de queda num estado de passivação e de desamparo pós-traumático, independentemente do momento de vida. Assim, apesar das violências cometidas pelo regime político autoritário ocorrerem já na vida adulta do escritor, podemos compreender esse sofrimento como um trauma precoce, pertencendo à matriz ferencziana de adoecimentos por passivação.

Neste momento, faz-se necessária a diferenciação proposta por André Green, e retomada pelos autores, entre atividade, passividade e passivação. A passivação aponta para um estado de impotência, de passividade-desamparo, que deve ser distinguida de uma passividade prazerosa. Essas são distinções fundamentais para permitir a análise do gesto brutal – uma tentativa de, através da atividade, defender-se contra a passividade, de um lado, e a passivação traumática, de outro.

Como exemplo do gesto brutal, os autores trabalham com uma fantasia de estupro relatada por Kundera, que ele discute em três ocasiões diferentes (um artigo para a revista l’Arc, em 1977, em O livro do riso e do esquecimento, em 1978 e em O gesto brutal do pintor: sobre Francis Bacon, em 2013). O escritor narra como, ao ouvir de uma jovem mulher, que o ajudava a escrever e publicar clandestinamente, que ela tinha sido interrogada pela polícia secreta e que ela não poderia mais ajudá-lo, o autor cai novamente no desamparo traumático da passivação, ligado à perseguição política, e se vê tomado pela fantasia de estuprar violentamente a mulher na sua frente.

A partir deste relato, os autores conseguem propor 6 diferentes determinações inconscientes para essa fantasia (considerando as limitações da interpretação de um material literário e biográfico, considerado fora do contexto de um tratamento psicanalítico). A sobre-determinação do gesto brutal considera duas vertentes principais: de um lado, a atividade se apresenta como uma recusa da passividade, que é representável, e ligada a uma agressividade erotizada. De outro lado, o gesto brutal é também uma defesa contra a passivação, caracterizando a atividade como uma defesa, mesmo que frágil, contra a agonia do desamparo. Nas palavras dos autores:

“O desejo e a fantasia de Kundera no apartamento de Praga são mostrados como tentativas de evitar a trajetória da queda, como soluços de atividade em meio à agonia de um processo de passivação” (2023, p. 133, tradução nossa).

Este artigo é uma importante contribuição para a compreensão das diferentes formas de adoecimento psíquico, contribuindo, a partir da análise de um relato biográfico, para uma reflexão clínica e teórica que considera de maneira mais complexa e sutil as relações entre trauma e destrutividade, de um lado, e as posições de passividade,
passivação e atividade, de outro.

Referências

Kundera, M. (1978). O livro do riso e do esquecimento. [The Book of Laughter and Forgetting]. (T. B. C. da Fonseca, Trad.). São Paulo: Círculo do Livro. (Original tittle: Kniha smíchu a zapomnerí).

Kundera, M. (2013). ““O gesto brutal do pintor: sobre Francis Bacon”. [The Painter’s Brutal Gesture: About Francis Bacon].” In Um encontro (Teresa B. C. da Fonseca, Trad.), edited by M. Kundera, 9–21. São Paulo: Companhia das Letras.

Coelho Junior, N. E.; Dal Molin, E. C. & Cromberg, R. U. (2023) On brutal gestures: trauma, destruction, and forms of mental illness, The International Journal of Psychoanalysis, 104:1, 122-136, DOI: 10.1080/00207578.2022.2105221